“A
vida tem algum propósito?”
Não
era a primeira vez que Ziva fazia essa pergunta a si mesma. Tinha 28 anos.
Cresceu numa cidadezinha desconhecida da Inglaterra, mas hoje morava em
Londres. Já havia concluído três faculdades. História, Antropologia e
Matemática. Não havia se tornado historiadora ou antropóloga. Mas foi parar
numa Universidade inglesa como professora de... Matemática.
“Se
não existe nenhum propósito nesta vida, por que há alguma coisa ao invés de
nada?”
As
interrogações não paravam, enquanto Ziva via as nuvens passando. Sim, ela
estava à bordo de um avião. Participava de uma organização de intercâmbios e
havia sido sorteada para passar duas semanas na companhia de vários professores
de vários países, em Roma. Aquela viagem veio na hora certa. Ela precisava
respirar novos ares, conhecer novas pessoas. Era uma pessoa livre,
independente. Morava sozinha. Não tinha namorado. Seus amigos eram poucos. Não
se podia dizer que Ziva era uma pessoa sociável.
Estava
tão absorta em seus pensamentos que nem observou direito quem se sentava ao seu
lado. Parou um pouco e procurou observar sem dar na vista. Era apenas um homem
que aparentava ter uns 40, 41 ou 42 anos, de acordo com o aspecto físico. Ziva
se gabava de ser capaz de “ler” a idade dos outros só pela cara e geralmente
acertava.
O
“quarentão” era atraente, mas Ziva queria distância daquele tipo de coisa. Na
verdade, os poucos amigos a chamavam de “coração de aço”, pois ela não dava a
mínima para os relacionamentos amorosos. Ninguém saberia dizer se um dia já a
vira saindo com alguém. A opinião dela sobre essas coisas resumia-se numa só
palavra: BOBAGEM!
Ela
gostava de dizer que não acreditava em três coisas: Em Deus, nas pessoas e no
amor.
Ela
não via nenhum sentido neste Universo. Somente uma coisa a perseguia. Algo que
a intrigava desde a infância. Quando olhou sua passagem e viu o número da sua
cadeira, mordeu os lábios.
“Que
coisa! Até aqui?”
Sua
cadeira era a de número 33. Por que não a 32 ou 34? Que tipo de maldição seria
aquela?
Enquanto
pensava nisso, tentou olhar sorrateiramente por sobre o ombro do companheiro de
vôo, pois ele estava lendo um livro.
Ela
queria ver o número da página do livro. Já pressentia o que iria ver. Mas ainda
nutria uma pequena esperança de que estivesse errada. Mas não estava.
Naquele
momento, o livro estava aberto entre as páginas 32 e 33.
“Antes
de morrer gostaria de saber o que tudo isso significa”.
Fechou
os olhos e tentou dormir. Algum tempo depois não sabia se estava sonhando ou
apenas lembrando do passado. As cenas começaram a ficar mais nítidas.
Ziva
era uma menina inteligente e inquieta. Fora adotada por uma professora inglesa,
que a encontrou num orfanato. Nunca soube nada sobre seus verdadeiros pais. Ziva
cresceu saudável e inteligente, mas seu coração era triste, havia uma
misteriosa melancolia em torno daquela menina. Tinha poucos amigos, passava
muito tempo trancada em seu quarto lendo, e pouco a pouco, sua aura de “menina
misteriosa” foi crescendo. Aos 9 anos começou a observar que havia uma espécie
de perseguição numérica em sua vida. Por seu nome começar com a letra A, seus
números nos colégios sempre foram os primeiros. Mas, misteriosamente, sempre
eram 3.
Quando
começou o Ensino Médio, pela primeira vez, seu número não foi 3. Agora era 9.
Sim, exatamente 9, ou seja, o quadrado de 3. Ela não falava disso com ninguém,
mas sentia-se muito incomodada. Certo dia na biblioteca da escola, esteve a
ponto de achar que havia ficado doida. Na seção em que estava pesquisando,
notou três estudantes. A camisa de um estampava o número 3. O segundo tinha o
número 33 e o terceiro, uma moça, usava uma blusa cheia de flores, um jardim.
E, no canto da blusa, uma pequena placa com o número 333.
- Isso já é demais! – Ziva
pensou em voz alta, o que chamou a atenção para ela – Desculpem! Empolguei-me
com um texto aqui – desculpou-se.
Repentinamente,
teve uma ideia maluca. Fechou os olhos e apanhou um livro qualquer. Abriu-o ao
acaso, mas logo fechou desconfiada. Havia aberto na página 33!
Ela
tinha medo de falar com alguém sobre isso. Tinha medo de ser enviada a algum
centro psiquiátrico. Havia pensado em falar com um padre. Mas, na semana em que
estava decidida a consultar o religioso, viu a propaganda de um filme na
televisão. Um filme sobre exorcismo. Logo desistiu da idéia.
“Vai
que ele pense que estou possessa.”
Com
o tempo, achou que o melhor era conviver em paz (e solitária) com aquelas
absurdas coincidências. Por ser muito estudiosa cedo entrou na Universidade. E,
pouco a pouco, aprendeu a conviver com aquelas coincidências. Imaginou que, se
fosse religiosa ou esotérica, já teria encontrado um sentido pra tudo aquilo.
Mas, mesmo tendo freqüentado uma igreja cristã quando adolescente, tornou-se
ateísta e fechou seu coração para os sentimentos amorosos.
Era
muito bonita e não fazia idéia do número de corações que despedaçou ao longo da
vida.
Mas,
se nada na vida fazia sentido, por que aquelas coincidências?
*******
UNIVERSIDADE GALILEU, PORTO
ALEGRE, BRASIL, 2008.
Última
sexta-feira de Abril de 2008.
Zilandra
Zambelli respirou fundo e concluiu seu raciocínio:
- Portanto, na história da
Filosofia a busca da verdade é o objetivo principal. Na verdade, essa busca é a
razão de ser da própria Filosofia.
Naquele
momento a sirene tocou e a professora anotou alguns números no quadro negro.
- Não se esqueçam. Leiam
essas páginas e façam uma dissertação sobre a busca da verdade no decorrer dos
séculos.
Mais
um dia, mais uma missão cumprida na vida da professora Zilandra, responsável
pela cadeira de Filosofia na Universidade Galileu, em Porto Alegre, Rio Grande
do Sul.
- A senhora vai participar
do debate hoje?
- Claro – Zilandra olhou
desconfiada para a estudante que havia se aproximado – Por quê?
- Nada demais. Só para
confirmar. Parece que a audiência vai ser concorrida – respondeu a moça,
sorrindo.
Nas
últimas sexta-feiras de cada mês, vários estudantes e professores se reuniam
numa sala denominada “Cova dos leões”. O nome era uma brincadeira com a famosa
cena bíblica envolvendo o profeta Daniel. Uma vez por mês um candidato era
selecionado para defender um tema qualquer. Ele ficava no meio de um círculo
cercado por 7 indivíduos conhecidos como os “7 LEÕES” cuja missão era
pressionar contra a parede o pobre coitado da vez e refutar todos os seus
argumentos. Ganharia o debate quem conseguisse a façanha de deixar os 7 leões
contra a parede. Desde que a “Cova dos leões” fora criada, nenhum “Daniel”
conseguira sair “vivo” daquela “cova”.
Quem
eram os 7 leões? Na verdade, eram quatro leões e três leoas.
1 – Miranda Farelly,
professor de Matemática.
2 – Santana Carvalho,
estudante de Ciências Políticas e irmão de Perival.
3 – Rochelle Sanchez,
professora de Ciências Sociais.
4 – Perival Carvalho,
estudante de Direito.
5 – Florêncio Farias,
estudante de Matemática.
6 – Yamara Rocha,
professora de Física.
7 – Zilandra Zambelli, professora de Filosofia.
Todos
eles tinham em comum o fato de serem ateus e pertencerem ao Clube dos
Racionalistas, grande associação de céticos e ateus em Porto Alegre. Na
verdade, o fundador desse clube, Miranda Farelly, era também o criador da “Cova
dos Leões”. Era o mais velho do grupo (42 anos), o mais inteligente, o mais
ácido e também o mais cínico. Todos sentiam um frio na espinha ao debaterem com
ele.
Naquela
noite, Hank Stones, estudante de História, seria o alvo. Ele estava se
preparando há três meses para o debate. Ele era cristão e seu tema envolvia
justamente o Cristianismo, alvo principal das críticas dos “7 leões”. Sempre
que o tema envolvia religião, a sala se tornava muito pequena para tanta gente.
“A
benéfica influência do Cristianismo na história da Humanidade” era o tema de
Hank.
- Senhores, enfrentamos
atualmente uma séria crise moral. O noticiário da tv nos deixa apreensivos com
relação ao futuro. Educadores e cientistas se perguntam: Qual a solução para o
desafiante problema da delinqüência juvenil? Muitas propostas e soluções são
apresentadas diariamente, mas todas falham. E falham por que? Porque o problema
da humanidade não é simplesmente questão de educação, ou moralidade. O problema
é espiritual. Melhor dizendo: falta de Deus na vida...
Sempre
que a palavra “Deus” ou alguma outra relacionada a religião eram pronunciadas,
o professor Miranda fechava a cara. Era um cara esquisito. Apesar de quarentão
morava sozinho, ninguém conhecia um parente seu e nem seu passado. Mas era
fácil deduzir que ele tivera sérios problemas com a religião no passado.
Hank
tinha duas horas para expor sua tese. Durante sua apresentação, poderia ser
interrompido a qualquer momento e ser interrogado por qualquer dos “leões”. Era
tempo suficiente para alguém ser “massacrado”.
A
tese de Hank era simples: O problema número 1 da humanidade era a ausência de
Deus nos corações. Bem, não vou transcrever o debate na íntegra, pois não é
exatamente o objetivo desta reportagem. O que me levou a publicar esta história
foi a série de acontecimentos estranhos que por pouco não abalou o prestígio da
Universidade Galileu. Como tudo começou logo após o debate de Hank, senti a
necessidade de citar alguma coisa daquela noite.
Sou
Alanna Maxwell, estudante de Jornalismo. Esta é minha primeira reportagem.
*******
Paris, setembro de 1999.
Biblioteca
Victor Hugo. Próximo à seção de livros esotéricos e religiosos, quatro amigos
conversavam em voz baixa. Havia vários livros em sua mesa, mas eles pareciam
mais interessado em conversar do que ler.
- Algo precisa ser feito
para humilhar esses ianques.
- Simples explosões em
ônibus ou embaixadas não fazem nem cócegas no orgulho deles. Precisamos de algo
inédito, fácil de executar e ao mesmo tempo devastador. Algo que os impactará
para sempre.
- Uma bomba atômica?
- Fale baixo, Ramires. Não,
isso está além das nossas possibilidades. Entrar com uma bomba lá não é tão
simples. Não precisamos correr riscos desnecessários.
- É verdade. Conheço um
pessoal disposto a tudo pela glória eterna.
- Glória eterna? Você está
falando de mártir suicida?
- Mais ou menos isso.
A
única mulher do grupo resolveu falar:
- Vocês estão lembrados da
histeria mundial no mês passado, por causa das profecias do tal Nostradamus?
- Claro, os jornais não
falaram de outra coisa – respondeu o sujeito que se chamava Ramires – Se não me
engano, o fim do mundo estava marcado para 11 de agosto, certo?
- Bem, as pessoas
aguardavam o fim do mundo para essa data – a mulher explicou – mas, no dia 11
de agosto de 1999, às 10 horas e 51 minutos, hora em Greenwich, o que ocorreu
foi um eclipse total do Sol. Melhor dizendo, a Lua interpôs-se entre a Terra e
o Sol, de tal forma que o disco solar ficou todo coberto durante alguns
minutos.
- Você está bem informada,
Dália – disse um dos homens, sorrindo.
- Informação é essencial,
meus amigos.
- E por que achavam que era
o fim do mundo?
- Por que havia uma
profecia do tal Nostradamus que dizia o seguinte – a mulher continuou
explicando – “NO ANO DE 1999 E SETE MESES, DO CÉU VIRÁ O GRANDE REI DO TERROR”.
- Mas aí fala “sete meses”,
e não oito.
- Bem, Rachid, os
entendidos no assunto dizem que Nostradamus estava usando o calendário Juliano,
etc., etc. Mas, mesmo assim, não faz muito sentido.
- Que tal voltarmos ao
nosso assunto, amigos?
- Tudo bem, Johnny. Você
tem razão – respondeu Ramires – mas foi a Dália que desviou a conversa para
esse Nostradamus.
- Desviei por uma razão,
meus amigos. No dia em que ocorreu o eclipse solar, eu estava em Nova York, e
ouvindo a imprensa noticiando o acontecimento e ao mesmo tempo falando de
Nostradamus, tive uma idéia doida. Muito doida mesmo. Eu estava resolvendo uns
negócios no World Trade Center, quando vi, na televisão, alguém citando a tal
profecia de Nostradamus, causadora da polêmica.
- E? – Johnny estava
impaciente.
- Aproximei-me de uma das
janelas do WTC – eu estava no 11.º andar – e, enquanto meditava na profecia, vi
um avião passando ao longe. Fiquei pensando: “DO CÉU VIRÁ O GRANDE REI DO
TERROR”. E a ideia doida surgiu.
- Que idéia doida? Vamos,
fale – Disse Johnny, como se estivesse dando uma ordem.
- Calma, meu caro. Não
esqueça quem dá os comandos aqui – Dália se irritou, mas logo relaxou e
continuou – já passou pela cabeça de alguém aqui assumir o controle de um avião
e lançá-lo contra um desses arranha-céus americanos, tipo as torres do World
Trade Center?
- Pelas barbas do profeta!
Naquele
momento não havia mais ninguém naquela seção de livros, por isso os quatro
amigos pareciam à vontade. Mas ali próximo, do outro lado, alguém tentava se
concentrar numa leitura. Entretanto, parecia que a conversa entre os quatro
amigos era muito mais interessante. Sim. Interessante, porém perigosa.
A
mulher chamada Dália tomou mais um gole de café. Levantou-se e ficou alguns
segundos com o olhar perdido num ponto qualquer, evidenciando que seus
neurônios estavam a mil.
Do
outro lado da seção dos livros, alguém tentava, com todo o cuidado possível,
olhar para o rosto de Dália.
Nenhum comentário:
Postar um comentário