UNIVERSIDADE GALILEU, PORTO
ALEGRE, BRASIL, 2008.
Foi
muito difícil a professora ministrar a aula daquela manhã, pois as conversas
paralelas entre os estudantes (inclusive entre mim e minha colega, Yana)
estavam todas voltadas para a misteriosa mensagem anônima.
É
claro que o primeiro pensamento da maioria é que aquilo devia ser obra de Hank.
A mensagem, claramente, era obra de algum cristão, e pelo tom, um fanático
religioso cristão. Era ameaçadora. Zilandra não era um amor de pessoa. Tinha
criado inimizade não somente com alguns cristãos, mas também com não cristãos.
Ela era uma mulher fechada, raramente esboçava um sorriso. Mas era uma ótima
professora. Muito inteligente. E também bonita. Entretanto, a “trindade
perfeita” que muitos homens procuram numa mulher não havia em Zilandra: Ela
tinha beleza, inteligência, mas faltava simpatia. Era relativamente jovem (38
anos), mas ninguém sabia nada de sua vida amorosa – se é que tinha alguma.
Aquele
era o primeiro ano dela naquela Universidade. Muitos estudantes, em apenas um
mês ou dois, conseguem firmar laços de amizade com outros colegas. Mas Zilandra
era anti-social. Seu círculo de “amizade” restringia-se ao pessoal do Clube dos
Racionalistas. Mesmo assim, nenhum deles conhecia algo sobre a vida pessoal
dela. Apesar da fama de antipática ser do conhecimento de todos, chamava a
atenção que entre ela e a professora de História, Flora Fernandes, o grau de
antipatia era muito maior.
Flora
estava há mais tempo naquela Universidade, mas não foi com a cara de Zilandra
desde o primeiro dia em que esta pisou no campus. Minha teoria é que as duas se
conheceram no passado e tiveram alguma divergência envolvendo algum homem. Esse
tipo de coisa é muito comum por aqui.
Enfim,
parece que só o pessoal do Clube dos Racionalistas suportava Zilandra Zambelli.
Mas
até aquele dia ninguém jamais tinha mandado qualquer mensagem ou recado
ameaçador.
Da
mesma forma, até aquele dia, nenhum final de debate na “Cova” tinha sido tão
tenso. Será que haveria alguma relação? Eu nem fazia ideia de que, em breve
estaria bancando a detetive.
- Com todo respeito,
senhor. Eu, por acaso, tenho cara de anjo da morte, ou seja lá o quê? Eu tenho
cara de idiota pra enviar uma mensagem dessa logo depois de uma discussão
daquelas, em que todo mundo é testemunha de que sai bastante irritado?
Hank
estava diante do reitor, o senhor Nebuzaradan Silva, numa das salas
administrativas. Por favor, não riam do nome do pobre reitor. Seu pai era
historiador, apaixonado pelas histórias da Mesopotâmia e seus três filhos
receberam nomes especiais: O mais velho se chamava Nabucodonosor, igual ao nome
do famoso rei da Babilônia. Nosso reitor era o filho do meio, e recebeu um nome
que, se não me engano, era de um importante oficial da Babilônia, na época do
Nabuco. O irmão mais novo do reitor recebeu outro nome exótico, Senaqueribe, um
rei da Assíria.
Para
quem gosta de coincidências, nosso reitor casou-se com uma historiadora,
Semaris (variação do nome da famosa rainha Semíramis, esposa de Ninrode,
fundador de Babel, na terra da Babilônia). Dizem que ela tem até mesmo o sangue
dos antigos habitantes da Mesopotâmia. Mas, para todos os efeitos, ela é apenas
uma americana que se apaixonou por um brasileiro de nome “estrambólico” (para
usar uma palavrinha que minha vó nordestina costumava pronunciar).
Bem,
perdoem minha mania por detalhes, por favor. Vamos voltar ao que interessa.
Hank foi chamado a atenção por ser o principal suspeito da ameaça escrita.
Conversei com ele logo depois e soube das minúcias.
Hank
era inteligente. Um sujeito meio zangado, às vezes, mas inteligente e
simpático. Não era do tipo de fazer inimizades em cada esquina. Não parecia ter
o perfil de quem não leva desaforos pra casa. Mas, como dizia minha vó
nordestina, “o coração das pessoas é terra que ninguém conhece”.
Se
Zilandra já não gostava dos cristãos, certamente aquela mensagem veio sepultar
de vez qualquer possível atração entre as partes.
Dentro
de dois dias, o incidente foi esquecido, mas Hank evitou estar nos mesmos
ambientes que Zilandra. Ele não queria mais problemas pro lado dele. Mas a
coisa só iria piorar nos dias seguintes.
*******
Ziva continuava concentrada em sua leitura.
“Na
Bíblia, existem centenas de fatos relacionados ao número 3, a começar da
doutrina da Santíssima Trindade.”
Alguns
exemplos somente nos dois primeiros capítulos da Bíblia:
-
Está escrito 3 vezes que Deus “criou” (Gn 1.1,21 e 27);
- 3
vezes diz que Deus “fez” (Gn 1.7,16,25);
- 3
vezes Deus nomeia as coisas (Gn 1.5,8,10);
- 3
vezes Deus separa ou divide (Gn 1.4,7,18);
- 3
vezes Deus abençoa (Gn 1.22,28 e 2.3);
-
Deus criou 3 tipos de vida (vegetal, animal e humana), etc.
Há
centenas de exemplos bíblicos:
-
Os 3 filhos de Noé;
-
Os 3 amigos de Jó;
-
Os 3 convidados celestiais de Abraão – Gênesis 18
-
Os 3 filhos de Levi;
-
Os 3 companheiros de Daniel;
-
Os 3 livros escritos por Salomão;
-
Os 3 maestros de Davi;
-
O Tabernáculo tinha 3 partes (Pátio, Lugar Santo e Santo dos Santos);
-
O homem tem 3 partes (Espírito, Alma e Corpo);
-
Na tentação de Jesus houve 3 propostas do Diabo;
-
3 apóstolos acompanharam Jesus em 3 ocasiões especiais (Pedro, Tiago e João);
-
Jesus é O Caminho, A Verdade e A Vida;
-
Havia 3 cruzes no Calvário;
-
A inscrição na cruz de Jesus foi feita em 3 línguas (hebraico, grego, latim);
-
Jesus ressuscitou no 3.º dia;
-
Há 3 predicados de Deus no Novo Testamento: Deus é Espírito (João 4.24); Deus é
Luz (I João 1.5); e Deus é Amor (1 João 4.8).
-
Há 3 virtudes no Cristianismo (Fé, Esperança e Amor), etc.
Ao
terminar a leitura, Ziva olhou novamente para o homem.
- Por que o senhor me
emprestou esta revista? – Sentiu-se um pouco constrangida em chamá-lo de
senhor, mas a outra opção seria “você” e certamente o constrangimento seria
muito maior.
- Desculpe, senhorita. Não
sabia que havia algo ofensivo nela, e...
- Não, não. Perdoe-me. Não
há nada de errado com ela. Eu só queria saber por que... não! Deixa pra lá.
Acho que estou é com sono. Obrigada. Depois leio mais.
Ela
entregou a revista ao homem, que a olhava de forma esquisita.
“Ele
está pensando que sou uma doida.” Ela virou a cabeça para o lado e fingiu
cochilar. “E talvez eu seja mesmo.”
O
que ela conhecia da Bíblia era o que talvez a maioria das pessoas conhecia. Ou
seja, quase nada. Sabia que certas histórias e personagens eram da Bíblia pelas
citações nos filmes e nos livros. Imaginava que a Bíblia fosse apenas um grande
livro de fábulas religiosas. Mas o destaque que ela dava ao número 3 devia ter
algum significado. Após ter lido o pequeno texto na revista emprestada pelo
senhor, se perguntou porque nunca procurara na Bíblia algo sobre o número 3.
Alguma pista que levasse a alguma resposta. Se ela fosse uma fanática religiosa
poderia encontrar qualquer explicação satisfatória sobre as coincidências
envolvendo o número 3. Quem sabe, talvez até fosse passar pela sua cabeça
idiotices do tipo “sou escolhida”, etc.
Mas,
acostumada a lidar com números e probabilidades, não dava para aceitar que tudo
aquilo fossem apenas coincidências. Uma pessoa normal encontrar num mesmo
momento três pessoas vestindo camisetas com números relacionados ao 3 não é
coisa rara. Mas alguém que já vem algum tempo sendo “perseguida” por tal número
e, no mesmo momento, abrir uma página de um livro contendo dois números 3...
não. Aí já é demais! Se isso acontecesse somente uma vez na vida seria algo
super normal. Mas não! Isso estava acontecendo com muita freqüência. Ela
concluiu várias faculdades, mas essa paranóia não cessava.
*******
UNIVERSIDADE GALILEU, PORTO
ALEGRE, BRASIL, 2008.
Primeira
Quinta-feira de Maio de 2008.
Naquela
noite, haveria um evento especial no pátio do jardim, um dos quatro pátios da
Universidade. Era o mais popular, pois era cercado por um bonito jardim.
Freqüentemente havia algum evento por ali. Naquela noite havia um seminário a
ser apresentado pelos estudantes de Filosofia. Quase todo mundo estava ali.
Depois de várias apresentações, umas boas, outras muito chaaaatas, chegou a
hora da professora Zilandra falar e fazer as considerações finais. E foi nessa
hora que a coisa mais absurda aconteceu.
- ... O trabalho sobre
Hegel, apresentado pela equipe Socratiana foi ótimo, mas desejo apontar alguns
equívocos...
Nesse
momento, ouviu-se um disparo e todos viram algo atravessando o painel usado
para transmitir as imagens do data-show. No canto direito do painel apareceu
repentinamente um pequeno buraco, feito pela bala disparada. Cerca de meio
metro do lugar onde estava Zilandra. O que veio em seguida foi típico desses
momentos: alvoroço, gritaria, gente jogando-se ao chão, etc.
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