terça-feira, 30 de setembro de 2014

CAPÍTULO 8 - UMA SUSPEITA IMPROVÁVEL

Roma, 2001.

- Tem certeza de que não quer mesmo me contar o que houve na biblioteca?

Ziva virou-se para Jenna, sua colega de intercâmbio.

- Não houve nada, já disse.

- Você nem sabe mentir. Não vou esquecer aquela cena. Estava distraída lendo um livro quando você chegou ofegante como se tivesse visto um fantasma.

Ziva olhou nos olhos de Jenna. Estava dividindo o quarto com outras duas professoras, mas houve uma certa sintonia entre ela e Jenna, a professora canadense. Logo se tornaram amigas. Mas não sabia como contar o que havia acontecido na biblioteca, quando esbarrou naquele jovem desconhecido.

- Bom, estou tentando organizar meus pensamentos. Você vai me achar uma doida quando contar. Se fosse você a me contar, eu acharia.

- Bem, fique a vontade então. Quando sentir que está pronta...

- Você acredita em amor à primeira vista? – A pergunta de Ziva saiu repentinamente e ela mesma ficou espantada.


- Amor à primeira vista? – Jenna soltou uma gargalhada – ora, ora, minha amiga. Não me diga que foi flechada pelo cupido?

- Sei lá. Nunca senti isso antes. Não sei como é. Mas foi a primeira coisa que veio em minha mente. Você tem alguma experiência no assunto?

- Acredito que várias. Já me apaixonei vezes sem conta. Algumas vezes a paixão não começou de forma súbita. Levou um tempo. Mas, em outras ocasiões, só olhei nos olhos do gato uma vez só e fiquei amarrada.

Ziva sorriu. Levantou-se, andou um pouco pela sala e disse:

- Tenho quase trinta anos e nunca me apaixonei antes. Acredita?

- Nãoooo! Você é de qual planeta? Tem certeza de que existe algum coração aí dentro?

- É estranho, não? Meu coração sempre viveu fechado. Muitos garotos até que tentaram alguma coisa, mas permaneci imbatível, coração de pedra.

Jenna sorriu.

- Mas parece que ontem alguém martelou essa pedra.

- Não sei. Ainda estou tentando entender. Como é que duas pessoas se vêem apenas uma vez e já começam a gostar uma da outra? Isso não existe. Não trocamos nem uma palavra.

- Escute. Venha aqui, sente, respire fundo e me conte essa história direitinho. Diga o que sentiu, o que está sentindo. Talvez minhas “experiências” possam lhe ser útil – Jenna sorriu ao falar a palavra “experiências”.

Alguns minutos depois.

- Parece história de novela. Isso nunca aconteceu comigo. Quer dizer, olhar nos olhos de um desconhecido, sentir o coração palpitar fortemente, o sangue gelar, essas coisas.

- Mas aconteceu. Ao olhar nos olhos senti algo que nunca senti antes. Era como tivesse olhando dentro de sua alma.

- É, dizem que os olhos são a janela da alma.

- Como isso é possível?

- Puxa! Eu gostaria que tivesse acontecido comigo. Agora isso é muito triste. Como é que você correu como uma doida e nem perguntou o nome do rapaz?

- Não sei. O que senti foi tão inesperado que não vi outra saída. Minha primeira reação foi correr mesmo. Talvez por vergonha, sei lá.

- Caracas! E continua pensando nele?

- Não consigo deixar de pensar.

- Caso sério, amiga. Muito sério. A primeira chance do seu coração conhecer as delícias do amor e você não sabe nem o nome do gato. Já pensou em procurá-lo pela Internet?

- Não acho que seja possível. Não sei nada dele, nem um nome, nada.

- Mas o rosto não esquecerá nunca mais.

- É, não sei. Bem, e o que o pessoal do intercâmbio está planejando para este restante da semana?

- É engraçado você querer mudar de assunto.

*******
UNIVERSIDADE GALILEU, PORTO ALEGRE, BRASIL, 2008.

Terceira segunda-feira de Maio de 2008.

Ninguém falava em outro assunto. Aproximei-me e ouvi dois estudantes conversando. Adivinhem sobre o que?

- Admiro a fibra da professora Zilandra. Mesmo sendo o alvo desse assassino misterioso, ainda tem ânimo para dar aulas.

- Falando nisso, o que você acha? Tudo começou depois daquele debate com o Hank.

- Mas acho óbvio demais. O tal de Justiceiro do Senhor parece ser inteligente demais para atacar uma pessoa com a qual discutiu publicamente na frente de todos. Ou seja, se fosse Hank, estava óbvio demais.

- Mas antes daquele dia a paz reinava por aqui.

- Sim, e isso me sugere a seguinte hipótese: E se algum inimigo oculto da professora se aproveitou do incidente envolvendo Hank para tentar matá-la e lançar todas as suspeitas sobre o azarado cristão?

- Isso é bem plausível, meu caro. Tem rumo.

- E tem mais. Será que é mesmo um cristão fanático como aparenta ser, ou seria mais uma máscara?

- Bom, para ser bem inteligente como parece ser, e, ao mesmo tempo, dá todos os sinais de que é um cristão fanático,... não combina. Faz mais sentido uma pessoa não cristã, tentando lançar a culpa em algum cristão.

- O que novamente afasta as suspeitas de Hank.

Interessante. O pensamento dos dois estudantes era exatamente semelhante ao meu e o de Leona.

Semaris Silva, a esposa do reitor, era formada também em História. E sua especialidade era história da Mesopotâmia. Havia uma lenda de que ela descendia dos antigos povos mesopotâmicos. Sua pele e seu nome davam mais força a lenda.

Com a morte da professora Flora, a cadeira de História ficou temporariamente vaga. Semaris tinha muitas ocupações, mas até que outro professor fosse contratado, ela seguraria as rédeas.

Naquele dia, o assunto envolvia a Inquisição. Os cristãos já estavam bastante desconfortáveis com o clima anticristão que crescia na Universidade, devido aos acontecimentos recentes. O tema da aula de História naquela semana complicaria mais ainda as coisas.

- Como sabem, a Inquisição é uma mancha na história do Cristianismo – Semaris costumava prender a atenção de todos. Além de ensinar muito bem, tinha um ar misterioso e, não se podia negar, era muito bela.

- O mundo seria mais rico, mais avançado hoje se muitas mentes brilhantes não tivessem sido eliminadas na Idade Média, culpa da ignorância reinante naqueles tempos. Ninguém podia pensar diferente da Igreja. A Inquisição freou o progresso da Ciência durante muitos séculos. Um prejuízo irreparável. Galileu por pouco não acabou na fogueira. Mas, quantos galileus não foram parar nas chamas? Quantas mentes poderosas não acabaram nas chamas da ignorância, quantos cientistas notáveis haveria no mundo hoje se a Igreja não existisse?

Aquele tom estava piorando as coisas. Os cristãos na sala estavam visivelmente constrangidos. Semaris estava exagerando. Se havia o mal no mundo, ele se chamava Igreja Cristã, era o que as palavras dela queriam dizer. Olhei para Leona. Ela estava muito séria. Qualquer um poderia adivinhar que, dentro de alguns minutos, aquela loira inteligente haveria de se levantar da cadeira e desafiar a professora.

Olhei para Semaris. Que olhar esquisito aquela mulher tinha! Frio e profundo. Se fosse verdade a teoria da reencarnação, certamente Semaris era a antiga rainha babilônica, esposa de Ninrod.

- Quando a Igreja passou a barrar a ciência, o mundo...

- Professora, por que não coloca os pingos nos iis?

Eu sabia que Leona não iria agüentar calada muito tempo.

- Como?

- Por suas palavras, qualquer um pode concluir que a religião cristã é o mal personificado.

- Mas quem criou a Inquisição, minha jovem?

- Uma elite eclesiástica dentro do cristianismo, professora, e NÃO OS CRISTÃOS. Se a elite desta Universidade decidir que os negros são filhos do diabo, não significa, de forma nenhuma, que NÓS, ESTUDANTES, E OS PROFESSORES, também pensamos a mesma coisa.

Um clima estranho invadiu a sala.

- Você interpretou mal minhas palavras.

- Não, de forma nenhuma. É mais provável que a senhora tenha usado mal as palavras... se não tencionava dizer o que disse há poucos minutos.

- Eu não usei mal as palavras...

- Então disse o que disse propositadamente.

- Você está atrapalhando minhas aulas.

- A senhora está jogando mais lenha na fogueira, lançando a culpa de tudo nos cristãos. Deve saber que, na Idade Média, havia uma Igreja Cristã institucional, aliada do Estado. Mas não era a única. Havia vários grupos de cristãos que eram perseguidos pelo Estado porque não aceitavam as deturpações que a “igreja oficial” vinha praticando. Jesus, o fundador do Cristianismo, não tem nada a ver com a Inquisição e com as Cruzadas. Se quer falar da Inquisição e culpar alguém, culpe os alvos certos. Culpe quem quiser culpar, mas não os cristãos. A História não pode ser falsificada assim. E, certamente a senhora conhece mais da História do que nós, evidentemente. Nós confiamos na senhora. E acreditamos que aquilo que nos ensina realmente aconteceu. Portanto, se ensinar o errado, vamos pensar que foi o certo. Pelo menos, muitos aqui só estão tendo um contato mais profundo com a História agora, e não possuem conhecimentos suficientes para argumentar com a senhora.

Bem, depois dessa, a coisa melhorou um pouco. Semaris resolveu passar um trabalho de pesquisa sobre o tema Inquisição. Mas a forma como olhou para Leona parecia dizer muitas coisas.


Naquele momento, um pensamento atravessou minha mente como uma seta. Uma seta envenenada, pois no mesmo balãozinho apareceram as palavras SEMARIS e JUSTICEIRO DO SENHOR. Sei lá. Era tudo tão estranho.

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