Roma, 2001.
- Tem certeza de que não
quer mesmo me contar o que houve na biblioteca?
Ziva
virou-se para Jenna, sua colega de intercâmbio.
- Não houve nada, já disse.
- Você nem sabe mentir. Não
vou esquecer aquela cena. Estava distraída lendo um livro quando você chegou
ofegante como se tivesse visto um fantasma.
Ziva
olhou nos olhos de Jenna. Estava dividindo o quarto com outras duas
professoras, mas houve uma certa sintonia entre ela e Jenna, a professora
canadense. Logo se tornaram amigas. Mas não sabia como contar o que havia
acontecido na biblioteca, quando esbarrou naquele jovem desconhecido.
- Bom, estou tentando
organizar meus pensamentos. Você vai me achar uma doida quando contar. Se fosse
você a me contar, eu acharia.
- Bem, fique a vontade
então. Quando sentir que está pronta...
- Você acredita em amor à
primeira vista? – A pergunta de Ziva saiu repentinamente e ela mesma ficou
espantada.
- Amor à primeira vista? –
Jenna soltou uma gargalhada – ora, ora, minha amiga. Não me diga que foi
flechada pelo cupido?
- Sei lá. Nunca senti isso
antes. Não sei como é. Mas foi a primeira coisa que veio em minha mente. Você
tem alguma experiência no assunto?
- Acredito que várias. Já
me apaixonei vezes sem conta. Algumas vezes a paixão não começou de forma
súbita. Levou um tempo. Mas, em outras ocasiões, só olhei nos olhos do gato uma
vez só e fiquei amarrada.
Ziva
sorriu. Levantou-se, andou um pouco pela sala e disse:
- Tenho quase trinta anos e
nunca me apaixonei antes. Acredita?
- Nãoooo! Você é de qual
planeta? Tem certeza de que existe algum coração aí dentro?
- É estranho, não? Meu
coração sempre viveu fechado. Muitos garotos até que tentaram alguma coisa, mas
permaneci imbatível, coração de pedra.
Jenna
sorriu.
- Mas parece que ontem
alguém martelou essa pedra.
- Não sei. Ainda estou
tentando entender. Como é que duas pessoas se vêem apenas uma vez e já começam
a gostar uma da outra? Isso não existe. Não trocamos nem uma palavra.
- Escute. Venha aqui,
sente, respire fundo e me conte essa história direitinho. Diga o que sentiu, o
que está sentindo. Talvez minhas “experiências” possam lhe ser útil – Jenna
sorriu ao falar a palavra “experiências”.
Alguns
minutos depois.
- Parece história de
novela. Isso nunca aconteceu comigo. Quer dizer, olhar nos olhos de um
desconhecido, sentir o coração palpitar fortemente, o sangue gelar, essas
coisas.
- Mas aconteceu. Ao olhar
nos olhos senti algo que nunca senti antes. Era como tivesse olhando dentro de
sua alma.
- É, dizem que os olhos são
a janela da alma.
- Como isso é possível?
- Puxa! Eu gostaria que
tivesse acontecido comigo. Agora isso é muito triste. Como é que você correu
como uma doida e nem perguntou o nome do rapaz?
- Não sei. O que senti foi
tão inesperado que não vi outra saída. Minha primeira reação foi correr mesmo.
Talvez por vergonha, sei lá.
- Caracas! E continua
pensando nele?
- Não consigo deixar de
pensar.
- Caso sério, amiga. Muito
sério. A primeira chance do seu coração conhecer as delícias do amor e você não
sabe nem o nome do gato. Já pensou em procurá-lo pela Internet?
- Não acho que seja
possível. Não sei nada dele, nem um nome, nada.
- Mas o rosto não esquecerá
nunca mais.
- É, não sei. Bem, e o que
o pessoal do intercâmbio está planejando para este restante da semana?
- É engraçado você querer
mudar de assunto.
*******
UNIVERSIDADE GALILEU, PORTO
ALEGRE, BRASIL, 2008.
Terceira
segunda-feira de Maio de 2008.
Ninguém
falava em outro assunto. Aproximei-me e ouvi dois estudantes conversando.
Adivinhem sobre o que?
- Admiro a fibra da
professora Zilandra. Mesmo sendo o alvo desse assassino misterioso, ainda tem
ânimo para dar aulas.
- Falando nisso, o que você
acha? Tudo começou depois daquele debate com o Hank.
- Mas acho óbvio demais. O
tal de Justiceiro do Senhor parece ser inteligente demais para atacar uma
pessoa com a qual discutiu publicamente na frente de todos. Ou seja, se fosse
Hank, estava óbvio demais.
- Mas antes daquele dia a
paz reinava por aqui.
- Sim, e isso me sugere a
seguinte hipótese: E se algum inimigo oculto da professora se aproveitou do
incidente envolvendo Hank para tentar matá-la e lançar todas as suspeitas sobre
o azarado cristão?
- Isso é bem plausível, meu
caro. Tem rumo.
- E tem mais. Será que é
mesmo um cristão fanático como aparenta ser, ou seria mais uma máscara?
- Bom, para ser bem
inteligente como parece ser, e, ao mesmo tempo, dá todos os sinais de que é um
cristão fanático,... não combina. Faz mais sentido uma pessoa não cristã,
tentando lançar a culpa em algum cristão.
- O que novamente afasta as
suspeitas de Hank.
Interessante.
O pensamento dos dois estudantes era exatamente semelhante ao meu e o de Leona.
Semaris
Silva, a esposa do reitor, era formada também em História. E sua especialidade
era história da Mesopotâmia. Havia uma lenda de que ela descendia dos antigos
povos mesopotâmicos. Sua pele e seu nome davam mais força a lenda.
Com
a morte da professora Flora, a cadeira de História ficou temporariamente vaga.
Semaris tinha muitas ocupações, mas até que outro professor fosse contratado,
ela seguraria as rédeas.
Naquele
dia, o assunto envolvia a Inquisição. Os cristãos já estavam bastante
desconfortáveis com o clima anticristão que crescia na Universidade, devido aos
acontecimentos recentes. O tema da aula de História naquela semana complicaria
mais ainda as coisas.
- Como sabem, a Inquisição
é uma mancha na história do Cristianismo – Semaris costumava prender a atenção de
todos. Além de ensinar muito bem, tinha um ar misterioso e, não se podia negar,
era muito bela.
- O mundo seria mais rico,
mais avançado hoje se muitas mentes brilhantes não tivessem sido eliminadas na
Idade Média, culpa da ignorância reinante naqueles tempos. Ninguém podia pensar
diferente da Igreja. A Inquisição freou o progresso da Ciência durante muitos
séculos. Um prejuízo irreparável. Galileu por pouco não acabou na fogueira.
Mas, quantos galileus não foram parar nas chamas? Quantas mentes poderosas não
acabaram nas chamas da ignorância, quantos cientistas notáveis haveria no mundo
hoje se a Igreja não existisse?
Aquele
tom estava piorando as coisas. Os cristãos na sala estavam visivelmente
constrangidos. Semaris estava exagerando. Se havia o mal no mundo, ele se
chamava Igreja Cristã, era o que as palavras dela queriam dizer. Olhei para
Leona. Ela estava muito séria. Qualquer um poderia adivinhar que, dentro de
alguns minutos, aquela loira inteligente haveria de se levantar da cadeira e
desafiar a professora.
Olhei
para Semaris. Que olhar esquisito aquela mulher tinha! Frio e profundo. Se
fosse verdade a teoria da reencarnação, certamente Semaris era a antiga rainha
babilônica, esposa de Ninrod.
- Quando a Igreja passou a
barrar a ciência, o mundo...
- Professora, por que não
coloca os pingos nos iis?
Eu
sabia que Leona não iria agüentar calada muito tempo.
- Como?
- Por suas palavras,
qualquer um pode concluir que a religião cristã é o mal personificado.
- Mas quem criou a
Inquisição, minha jovem?
- Uma elite eclesiástica
dentro do cristianismo, professora, e NÃO OS CRISTÃOS. Se a elite desta
Universidade decidir que os negros são filhos do diabo, não significa, de forma
nenhuma, que NÓS, ESTUDANTES, E OS PROFESSORES, também pensamos a mesma coisa.
Um
clima estranho invadiu a sala.
- Você interpretou mal
minhas palavras.
- Não, de forma nenhuma. É
mais provável que a senhora tenha usado mal as palavras... se não tencionava
dizer o que disse há poucos minutos.
- Eu não usei mal as
palavras...
- Então disse o que disse
propositadamente.
- Você está atrapalhando
minhas aulas.
- A senhora está jogando
mais lenha na fogueira, lançando a culpa de tudo nos cristãos. Deve saber que,
na Idade Média, havia uma Igreja Cristã institucional, aliada do Estado. Mas
não era a única. Havia vários grupos de cristãos que eram perseguidos pelo
Estado porque não aceitavam as deturpações que a “igreja oficial” vinha
praticando. Jesus, o fundador do Cristianismo, não tem nada a ver com a
Inquisição e com as Cruzadas. Se quer falar da Inquisição e culpar alguém,
culpe os alvos certos. Culpe quem quiser culpar, mas não os cristãos. A
História não pode ser falsificada assim. E, certamente a senhora conhece mais
da História do que nós, evidentemente. Nós confiamos na senhora. E acreditamos
que aquilo que nos ensina realmente aconteceu. Portanto, se ensinar o errado,
vamos pensar que foi o certo. Pelo menos, muitos aqui só estão tendo um contato
mais profundo com a História agora, e não possuem conhecimentos suficientes
para argumentar com a senhora.
Bem,
depois dessa, a coisa melhorou um pouco. Semaris resolveu passar um trabalho de
pesquisa sobre o tema Inquisição. Mas a forma como olhou para Leona parecia
dizer muitas coisas.
Naquele
momento, um pensamento atravessou minha mente como uma seta. Uma seta
envenenada, pois no mesmo balãozinho apareceram as palavras SEMARIS e
JUSTICEIRO DO SENHOR. Sei lá. Era tudo tão estranho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário